5 de novembro de 2016

O Futuro e o Nada

Nós vivemos, nós pensamos, nós agimos, eis o que é indubitável; nós morremos, isto não é menos certo. Porém, deixando a Terra, para onde vamos? Em que nos transformaremos? Seremos melhores ou piores? Seremos ou não seremos? Ser ou não ser, tal é a alternativa; é para sempre ou para nunca; é tudo ou nada: ou viveremos eternamente, ou tudo estará acabado, sem retorno. Vale bem a pena pensar nisso. Todo homem experimenta a necessidade de viver, de fruir, de amar, de ser feliz.

Dizei àquele que sabe que vai morrer que ele ainda viverá, que sua hora foi retardada; dizei-lhe especialmente que ele será mais feliz do que o foi, e seu coração vai palpitar de alegria. Mas, para que serviriam essas aspirações de felicidade se um sopro pode fazê-las desaparecer?

Existe alguma coisa mais desesperadora do que a ideia da destruição absoluta? Afeições sagradas, inteligência, progresso, saber laboriosamente adquirido, tudo seria aniquilado, tudo estaria perdido! Que adiantará nos esforçarmos em nos tornar melhores, nos constrangermos para reprimir as paixões, nos fatigarmos para enriquecer nosso espírito, se desse proceder não devemos recolher nenhum fruto, principalmente com a ideia de que amanhã talvez isso não nos servirá mais para nada? Se fosse assim, a sorte do homem seria cem vezes pior que a do bruto, porque o bruto vive inteiramente no presente, na satisfação de seus apetites materiais, sem aspiração em relação ao futuro. Uma secreta intuição diz que isso não é possível.

Pela crença em o nada, o homem concentra inevitavelmente todos os seus pensamentos na vida presente; com efeito ele não poderia, racionalmente, preocupar-se com um futuro que não espera. Essa preocupação exclusiva com o presente o conduz naturalmente a pensar em si antes de tudo, é, pois, o mais poderoso estimulante do egoísmo, e o incrédulo é coerente consigo mesmo quando chega a esta conclusão: “Gozemos enquanto aqui estamos, gozemos o mais possível, pois que, depois de nós, tudo está acabado; gozemos rápido, porque não sabemos quanto isso durará”; e a esta outra, aliás bem grave para a sociedade: “Gozemos, não importa à custa de quem, cada um por si; a felicidade, neste mundo, é do mais astuto.”

Se o respeito humano retém alguns, que freio podem ter aqueles que não creem em nada? Eles dizem que a lei humana atinge apenas os inaptos; eis por que aplicam seu talento nos meios de se esquivarem dela.

Se existe uma doutrina malsã e anti-social é seguramente o niilismo, porque ela rompe os verdadeiros laços da solidariedade e da fraternidade, fundamentos das relações sociais.

Vamos supor que, por uma circunstância qualquer, todo um povo adquire a certeza de que, em oito dias, em um mês, em um ano se assim se quer, será exterminado, que nenhum indivíduo sobreviverá, que não restará mais nenhum traço de si mesmo após a morte; que fará esse povo durante esse tempo? Trabalhará para o seu melhoramento, para a sua instrução? Entregar-se-á ao trabalho para viver?

Respeitará os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Irá submeter-se às leis, a uma autoridade, qualquer que ela seja, mesmo a mais legítima: a autoridade paterna? Haverá para ele um dever qualquer? Certamente que não. Pois bem! O que não acontece coletivamente, a doutrina do niilismo o realiza cada dia isoladamente. Se as conseqüências não são tão desastrosas quanto poderiam ser é porque, em princípio, na maior parte dos incrédulos há mais fanfarrice do que verdadeira incredulidade, mais dúvida do que convicção, e porque eles têm mais medo do nada do que o que querem fazer parecer: o título de espírito forte alimenta o seu amor-próprio; em segundo lugar, porque os incrédulos absolutos são em ínfima minoria; eles sofrem involuntariamente a influência da opinião contrária e são mantidos por uma força material; porém, se a incredulidade absoluta chegar, um dia, à condição de maioria, a sociedade estará em dissolução. É para o que tende a propagação dessa doutrina.

Quaisquer que sejam as suas conseqüências, se ela fosse verdadeira, seria necessário aceitá-la, e não seriam nem sistemas contrários, nem a ideia do mal que dela resultaria, que poderiam fazer com que ela não existisse. Ora, não é preciso disfarçar que o cepticismo, a dúvida, a indiferença, cada dia ganham mais terreno, apesar dos esforços da religião; isso é positivo. Se a religião é impotente contra a incredulidade, é porque lhe falta alguma coisa para combatê-la, de tal maneira que, se ela fi casse na imobilidade, em um dado tempo seria infalivelmente ultrapassada.

O que falta à religião neste século de positivismo,4 em que se quer compreender antes de crer, é a sanção de suas doutrinas por fatos positivos; é também a concordância de certas doutrinas com os dados positivos da Ciência. Se ela diz branco e os fatos dizem negro, é preciso optar entre a evidência e a fé cega.

É nesse estado de coisas que o Espiritismo vem opor um obstáculo à invasão da incredulidade, não somente pelo raciocínio, não somente pela perspectiva dos perigos que ela traz consigo, mas pelos fatos materiais, fazendo tangíveis e visíveis a alma e a vida futura.

Cada um de nós, sem dúvida, é livre, na sua crença, para crer em alguma coisa ou não crer em nada; porém, aqueles que procuram fazer prevalecer no espírito do povo, principalmente na juventude, a negação do futuro, sustentando-se na autoridade do seu saber e na superioridade da sua posição, semeiam germes de perturbação e de dissolução na sociedade, e se expõem a uma grande responsabilidade.

Existe uma outra doutrina que se defende de ser materialista, porque admite a existência de um princípio inteligente fora da matéria, é a da absorção no todo universal. Segundo essa doutrina, cada indivíduo assimila, em seu nascimento, uma parcela desse princípio que constitui sua alma e lhe dá a vida, a inteligência e o sentimento. Por ocasião da morte, essa alma retorna ao foco comum e se perde no infinito como uma gota de água no oceano.

Essa doutrina é, sem dúvida, um passo à frente sobre o materialismo puro, porquanto ela admite alguma coisa, enquanto que a outra não admite nada, porém, as suas conseqüências são as mesmas. Que o homem seja lançado no nada ou no reservatório comum, para ele é a mesma coisa; se, no primeiro caso, ele é exterminado, no segundo, ele perde sua individualidade; é, portanto, como se ele não existisse; as relações sociais também não deixam de ser rompidas, e para sempre.

O essencial para ele é a conservação do seu eu; sem isso, que lhe importa ser ou não ser! O futuro para ele é sempre nulo, e a vida presente é a única coisa que lhe interessa, que o preocupa. Sob o ponto de vista de suas conseqüências morais, essa doutrina é tão perigosa, tão desesperadora, tão estimulante do egoísmo quanto o materialismo propriamente dito.
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Do livro O Céu e o Inferno, Allan Kardec

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